
Não há como descrever o anoitecer de um deserto gélido. A sensação da primeira noite fica marcada em seu íntimo para todo o sempre. Enquanto o calor se esvai, o frio corta sua alma; a cada respiração, o álgido ar se crava em seu cerne. Sua pele petrifica-se, racha-se, como parte do solo em que se pisa.
Era nessa hora, com a luz avermelhada do moribundo Sol a desaparecer, que Antônio se revirou em sua tenda, limpou o rosto com um trapo de pano, e falou com desdém:
– Ei, ei João. Eu soube que uma borboleta destruiu a tenda de um colega nosso. Não é? Ouviu dizer também?
Nada de resposta. Apenas uma respiração ecoa dentro da barraca.
Antônio continuava irrequieto sob o colchonete improvisado de palha, sem achar uma boa posição para dormir. Costumava tentar conversar até que o sono viesse. Mas esse truque não dava certo quando o seu parceiro fingia que não ouvia nada.
Uma forte brisa continuava a soprar lá longe, carregada de finos grãos dourados de uma areia que outrora já fora solo de uma viva floresta, ou então o leito de um mar colorido. Fato é que agora não existia mais vida sobre terras tão melancólicas. Não existia mais nada.
– Temos que tomar cuidado, pode aparecer alguma borboleta. E não há homem que possa parar uma.
João, seu capitão, solta um gemido e reclama.
– Como você é um idiota, Antônio. Como um animal pode destruir uma tenda? Uma borboleta? Isso não existe… É invenção para gente como você.
Sem mágoas, Antônio se isolou e lamentou que este seu companheiro de campanha fosse tão descrente. Ah! Não entendia como alguém não temia as borboletas. Há muitos anos, quando era apenas uma criança, ouvia infinitas histórias sobre animais, magias, ciência e milagres.
E insetos. Insetos estavam entre as criaturas mais fabulosas… diziam que as borboletas, enormes seres de asas coloridas, aprisionavam o vento. Bem, fazia sentido. Ou por que o vento quando passava demonstrava uma enorme fúria e desespero, levando tudo? Estava claro que só podia ser uma fuga desesperada.
Quando adolescente, entrava escondido no botequim, atrás do balcão. Passava sorrateiro por entre pernas, furtava copos e ouvia os adultos com suas grandes façanhas. Escutou sobre um grupo de caçadores que uma vez achou um lago inteiro, com água suficiente para dezenas de pessoas, quando então perceberam milhares de seres pequenos, azuis, voando como facas junto a água. Aqueles seres diabólicos protegiam a sede, impedindo qualquer homem de se aproximar e se saciar. Aqueles seres fatiaram os ousados caçadores, sem piedade nem lástima. Sem dúvidas, histórias medonhas que assustaram o jovem que agora, anos depois, não entendia como alguém não se interessava por tais assuntos.
Em seus pensamentos se passaram horas até que um som o chamou de volta além do devaneio. Estremeceu-se. Uma borboleta? Não, um alarme falso. Era apenas o ronco de seu companheiro. A adrenalina logo sumiria.
Assim a lembrança da infância desaparece da mente de Antônio e seus pensamentos se tornam mais uma vez distantes. Uma enorme escada aparece, prateada, apontando para uma montanha dourada, onde o vento está acorrentado, e onde uma gargalhada ecoa a milhares e milhares de quilômetros.
– O vento, o vento, tenho que o libertar – murmura, de olhos pregados.
E num instante é balançado. A escada está caindo, ele está caindo junto, e antes de se encontrar com o chão, vê seu sério capitão a sacudi-lo, bem como a bradar ríspidas ordens para se levantar. Vê o Sol pela brecha aberta na cabana: o céu tornou-se novamente limpo e o laranja mais uma vez prevalecia.
– Veja, João! Ao longe… A cordilheira. Podemos seguir à sudeste, e, quem sabe, não chegaremos lá?
Sem mostrar alguma animação, João começou a desmontar rapidamente a barraca, apagar vestígios e se colocou a caminhar sem olhar para trás. Uma viagem longa e tediosa, junto do espectro de delgadas pedras pontiagudas em súplica para o céu. Às vezes Antônio olhava em todas direções para ver se achava algum demônio ou alguma árvore mágica, e sempre se desapontava a esse respeito. Porém nunca perdia qualquer tipo de esperança, nem mesmo a que se referia à uma mudança de atitude do carrancudo companheiro que não conversava. “Estou ao lado de uma estátua”, pensava.
O tempo mudava aos poucos, conforme subiam em altitude e uma névoa de areia se adensava aos poucos. Apenas ouvir o vento, o eco, e a própria respiração, os levavam a um triste transe, tal como se não existisse outro propósito na vida, a não ser andar e andar.
A altura revelaria uma linda paisagem, se não fosse a constante neblina obscurecendo a visão dos homens. Estavam cansados. E é nessa altura da montanha, à beira de um infinito abismo físico e mental que mais uma vez se escureceu. A tenda foi armada: um ponto minúsculo e frágil entre rochas agudas e afiadas.
Antônio nunca deixava de estar agitado à noite, mas desistiu de tentar conversar, ou de se virar até achar uma boa posição (sempre em vão). Tudo indicava que seria só mais uma noite normal e quieta. Mas algo ecoou. Forte, belo, limpo e vivo.
– O QUE FOI? – Assustou-se o capitão João.
– Não sei, parece o uivar de um lobo solitário…
– Uivar? Não seja tolo, não existem lobos para cá.
– Claro que existem. E hoje é dia de lua cheia – Respondeu Antônio, alegrando-se por poder conversar finalmente – A fogueira está acessa. Não tem com o que se preocupar.
Novamente foi ignorado, mas percebeu o agito de seu companheiro.
João em um movimento brusco, saltou da cama e abriu a tenda, encarando a lua cheia… A Lua cheia!
– Maldita Lua! – E se contorceu, trêmulo, gemendo. Odiava ver a Lua lá, brilhante, branca e imponente.
– Se quiser, podemos subir mais alto, poderemos alcançar ela! – zombou Antônio, achando graça do estranho medo de seu companheiro.
Mas João chorou.
Seus olhos se transformaram no reflexo perfeito da lua, tão arregalados e brancos. Pela testa gelada sentia gotas quentes, a fluir. Via silhuetas de pessoas pela bruma. Sim, eram pessoas, não eram rochas ou pedras, eram espectros! Queriam o alcançar, o pegar! Já podia sentir seus toques, respirações e chamados.
Foi transportado para uma velha cadeira de palha, ainda criança, escutando o barulho de cartas serem jogadas na mesa, resmungos e ofensas de jogadores velhos, num desafio ao tédio da pequena vila. Um som tão comum, cortado por um som forte, belo, limpo e vivo.
– Escute meu filho João, está escutando!?
– Sim. Que é isso pai?
– É uma linda sinfonia, não é filho?
– Sinfonia papai?
– Sim, uma tão antiga quanto a vida… O que é antigo quanto a vida? Você sabe meu garoto?
Não, ele não sabia.
– A morte é tão velha quanto a vida, meu jovem… A sinfonia são lobos cantando para a morte.
Queria que o pai parasse, não queria ouvir sobre vida, morte, ou lobos, seja o que eles fossem. Queria voltar a ficar sentado e ver o vai-e-vem dos baralhos e cartas, e não na recente morte de sua mãe. Queria se esconder do luto.
– A lua cheia, filho. É a morada dos mortos. Os lobos sabem que seus antepassados mortos estão na lua, e querem alcança-los com seus uivos… Nossos antepassados estão lá também, sua mãe está lá… Não podemos alcança-los, mas eles podem alcançar a nós, se subirmos alto.
Chega! A criança assustada gritou naquela hora. Chega! A criança gritou em todas as noites de lua cheia que ouvia sua mãe como um doce murmúrio a dizer seu nome, e depois nas que ouvia as risadas de seu pai, e nas que escutava o lamento de antigos amigos. Chega! João gritou, empurrando Antônio ao lado, chorando, uivando. Insano, saltou pelo abismo cortando a neblina e, por fim, sumiu deste mundo.
Antônio regressou à vila, pensativo em como alguém poderia temer a Lua cheia e lobos – e não borboletas! Oras, como saltar para a morte, por causa da Lua? Impossível… E então Antônio contava a todos, gesticulando, atuando, reproduzindo sons com mínimos detalhes, tudo sobre a borboleta invisível e soturna, que empurrou seu amigo pelo limite do abismo.
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