
Eu fazia o meu aniversário de doze anos no mesmo dia do Festival da Queda. Não era uma data alegre, pois, apesar do nome, o festival era um momento quase fúnebre, quando todos os adultos se reuniam, acendiam lanternas, abriam as garrafas de licores e cantavam músicas sobre mundos distantes.
A minha avó costumava chorar.
É por isso que não gosto de receber presentes em meu aniversário. Parece simplesmente errado. Mas naquele dia, em específico, eu gostei. O meu pai finalmente disse que me levaria à superfície.
A minha mãe ficou brava, chegou a discutir. Ouvi ela declarando sua longa lista de perigos: “animais perigosos não catalogados; queda de detritos radioativos e incandescentes; chuvas ácidas, tempestades de areia e outros fenômenos meteorológicos que nem nomeamos, e a certa, derradeira possibilidade de se perder e então morrer de fome ou frio”.
Ela sempre terminava essa lista, que eu já havia decorado, dizendo “não pertencemos e não somos bem-vindos aqui”.
Mas o meu pai apenas sorriu, e, como sempre, minha mãe desistiu. O sorriso do meu pai fazia todo mundo desistir, seja qual fosse a discussão.
Eu mesma fiz minha mochila. Coloquei a lanterna, alguns biscoitos duros que minha vó havia feito, meu casaco térmico. Não me esqueci do mais importante, meu amuleto.
Eu o havia ganhado em outro aniversário. Meu pai dizia que era a peça mais importante de uma nave. Chegar até as sucatas da Nave era um grande risco, então aquela peça deveria ser mesmo especial, pois lembro do risco que ele passou até a encontrar. Cheguei a perguntar o nome daquilo, e lembro de sua empolgação em me contar, mas logo me esqueci. Geralmente esquecemos fácil o que não entendemos, sobretudo quando crianças.
Não perguntei de novo sobre o que o aquele objeto realmente era. O meu pai era respeitado por todos justamente em sua função de engenheiro, arrumando e montando equipamentos vitais. Eu não queria que ele achasse que eu fosse uma filha sem a mesma capacidade para mecânica, alguém que tão pouco saberia guardar o nome das coisas, e que assim pudesse manchar alguma espécie de honra hereditária
Então, para mim, era apenas um amuleto.
Com todos os suprimentos prontos, seguimos o corredor desde a abóbada que era nosso lar dentro da grande caverna que continha o que conhecíamos como civilização. Passamos por várias outras de uso comunitário, até um longo caminho estreito. Nas paredes da caverna reluziam minerais brilhantes, que intercambiavam de coloração conforme passávamos perto. Desde menores, tentávamos descobrir se algum sentimento em específico influenciava na cor dos minerais, mas, ao que parece, é apenas um fenômeno aleatório. Ainda tenho dúvidas. Meu pai brilhava azul, um azul calmo, e eu brilhava laranja.
O brilho mineral era reforçado por lâmpadas frias e opacas, espaçadas simetricamente ao longo de todo aquele corredor natural. Nunca chegaram a criar uma pavimentação específica ali. Se o chão estava alisado, era apenas pelo uso contínuo de outrora, com dezenas de insistentes pés lixando a superfície. No entanto, desde então cada vez menos pessoas passam por ali. Sedimentos vindos das paredes e erosões voltavam lentamente a dominar o ambiente.
Devo dizer que, apesar da idade, o meu pai parecia bastante ágil, se agachando ou subindo degraus naturais quando necessário. Talvez ele nem fosse tão velho assim, talvez hoje eu seja mais velha que ele era. Mas assim, continuamos esgueirando-se por corredores, até que uma luz estranha, pálida, a princípio tímida e difusa, passou a iluminar nosso caminho.
Eu já sabia o que era, todos sabiam, mesmo aqueles que nunca foram até a superfície. Era a luz vinda da estrela em que este planeta orbitava, a qual nunca nos importamos em dar um nome. Não que não fossemos gratos por ela. A estrela era nossa grande forte de energia, mas, para uma sociedade antiga como a nossa, perdidas em um planeta qualquer, víamos a natureza apenas sob uma ótica pragmática, impessoal. Com certeza, em algum outro lugar, aquela estrela teria um nome composto por letras e números, como num catálago.
Mais perto da abertura por onde irradiava a luz, meu pai fez um sinal – sempre sorrindo – para eu colocar uma espécie de máscara que ele agora entregava. A máscara tampava apenas meus olhos com um vidro escuro, amarrada com uma borracha que enroscou no meu cabelo, me beliscando. Fingi que estava tudo bem, não era hora de mostrar fraqueza.
Então ele disse:
– Depois daquela curva, subiremos por um poço e a luz ficará mais forte. Você ainda precisa acostumar seus olhos.
Não demorou muito para o caminho, até então horizontal, se tornar abruptamente vertical. Havia ganchos nas paredes criando degraus, bem como uma série de cordas e uma pequena plataforma, que servia como elevador. Meu pai mandou-me subir ali, eu recusei.
– Posso muito bem subir pelos degraus! Não preciso do elevador – falei com mais ímpeto do que queria.
Meu pai pensou um pouco. Então disse.
– Certo, mas deixe pelo menos eu amarrar uma corda em você. E não conte para sua mãe.
O meu pai sabia que segredos me convenciam, assim aceitei pelo menos ser amarrada, com um sentimento de cumplicidade. Subimos, eu desajeitada e meu pai com uma habilidade espantosa.
Ao me deparar com a primeira visão da superfície, fiquei sem saber se a minha falta de ar era por causa da impressão da vastidão, ou pelo esforço da subida. Parecia tudo tão…. impossível. Nunca, mesmo vendo imagens e fotografias, eu poderia entender e conceber aquelas noções de distância, amplitude, da falta de um teto ou paredes, de ver o céu.
Como poderia entender o real significado de liberdade, sem nunca ter visto a imensidão do mundo?
Imediatamente entendi a ausência diária do meu pai, aquela que tanto me causava inveja. Era impossível competir com isso.
Talvez você já saiba como é uma superfície, mas não a do meu planeta. Ela é plana, até onda a vista se perde. Há rochas maiores, rochas menores, algumas do tamanho da minha abóboda – onde caberiam três pessoas de pé uma acima da outra. Mas, ainda assim, na escala da minha visão, tudo parecia tão plano. Não havia vegetação, ou água. Como nós, essas coisas pareciam preferir existir abaixo da superfície, seguras.
Tampouco me parecia haver animais perigosos. Tive certeza de que minha mãe estava exagerando.
Meu pai quebrou meu devaneio, com a esperada pergunta:
– E então, o que achou?
É estranho pensar que não foi o mundo aberto que mais me agradou, mas o sentimento de ter o meu pai ali, junto de mim. Como se existissem só nós dois, em um mundo criado exclusivamente para aquele momento.
No subterrâneo, é difícil, diria impossível, estar em um lugar sem outras várias pessoa. Somos acompanhados constantemente por um sentimento sufocante. Eu sempre soube disso, apenas não entendia o motivo. Mesmo em nossa abóbada morava meu irmão, minha vó, tia, primo, mãe e pai, e uma gama de pessoas vindo e indo,. solicitando ajuda do meu pai… E os ecos estão sempre presentes. Ecos de pessoas, ecos de equipamentos como geradores, estufas e exaustores. Quis aproveitar esse momento. Eu, ele e o céu
-O céu é sempre tão cinza?
-Quase sempre que subo está nublado. São nuvens que fecham a visão. Mas nem sempre. Às vezes, com o céu limpo, você verá detritos, milhares de pontos, cobrindo o céu também. Tantos que formam um segundo céu. Camadas e camadas, como de uma cebola, cobrindo o planeta. De algum modo, as poucas aberturas nessa nuvem de lixo espacial, e suas superfícies espelhadas, permitem essa pouca luz solar. Com muita, muita sorte, você conseguirá ver uma ou outra estrela à noite.
Fiquei curiosa, queria ver esses tão temidos detritos, que, dentre tudo, nos impediam também de viver na superfície. A maioria estava inerte, uma espécie de entulho flutuante acumulado por milhares de anos, pairando ao redor do planeta. Calhava que, em certos momentos, eles caíam, em grandes quantidades, como uma chuva de metais incandescentes.
Das cavernas, não ouvíamos nada.
Parece que alguns desses detritos são naturais, pedaços de rocha de alguma lua antiga, outrora realmente grande, desintegrada. Mas muito outros, são feitos por alguma especíe, que deve ter vivido aqui ou na própria lua.
Não sabemos quem construiu esses equipamentos ou para que. Nada sobre o povo que destruiu sua própria lua. Se remanesceram vestígios de alguma civilização, estavam distantes, inatingíveis. Era irônico pensar que as únicas memórias de um povo fossem o seu lixo. Senti muita pena deles.
Chegamos aqui, neste planeta, por puro acaso, em uma rota não antes mapeada.
Somos seres espaciais, minha avó dizia. Gerações e gerações vivendo em naves enormes, autossustentáveis, em perpétuo movimento. Parávamos apenas para minerar o necessário e despejar o desnecessário.
Éramos uma frota unida, poderosa e nômade. Até que, não mais.
Conflitos internos fizeram algumas naves se separarem, entre as quais, a que estavam meus avós, e meus pais ainda bebês.
Os idosos pouco falavam deste tempo, arrependidos ou imersos em suas teimosias. Pois, sozinhos, como uma facção separada, não conseguiram resolver seus próprios problemas mecânicos. Ao que entendi, da história sempre repetida no Festival da Queda, ocorreu algum problema específico em um tipo especial de bateria.
Quase tudo na nave era baseado em baterias solares, pelo menos todas as atividades cotidianas. Mas certos aparatos necessitavam de fusões nucleares específicas mais potentes, de um mineral raríssimo em todo o universo. Entre esses aparatos, estavam os próprios motores de dobra, e foi justamente ali que o problema surgiu, desencadeando problemas secundários. A punição do destino para a arrogância de meus antepassados. Ficarem sem combustível.
Como única alternativa, meus antepassados precisaram encontrar esse planeta, o único lugar habitável, no mínimo do possível. Parece que nos detritos havia rastros do material nuclear, e então arriscaram. Quem sabe, algo poderia ser utilizado?
Isso ocorreu exatamente a 62 anos antes daquele meu décimo segundo aniversário. A Queda.
Damos ao evento este nome pois não foi de fato um pouso, mas uma vertiginosa e desenfreada descida.
Os detritos que envolvem o planeta, de material e comportamento instável, terminou por afetar mais ainda a estrutura da nave, tornando o seu controle impossível. É possível que pedaços da fuselagem da nave e vários equipamentos secundários tornaram-se parte dos próprios detritos.
Era por esses detritos, os que caiam eventualmente, que meu pai subia à superfícies. Foi por isso que eu subi com ele naquele dia.
O céu começou a escurecer, e um vento, até então inexistente, começou a bater em meu rosto, lançando pequenos grãos de areia que arranhavam minha pele.
Meu pai rapidamente pediu para eu colocar uma touca que cobria todo o resto, feita do mesmo material do meu casaco. Junto da máscara ocular, eu estava totalmente coberta. Pensei que ele voltaria imediatamente, mas então ele falou, elevando a voz por causa do uivo do vento.
-Você está vendo crateras ou alguma nave?
Não, eu não estava. Fiz um sinal negativo com a cabeça.
– Exato. Essas tempestades de vento, trazem muita areia, às vezes até mesmo rochas. Elas nivelam o chão, enterrando tudo. Retiramos quase tudo da nave, para adaptar nossas habitações nas cavernas. Mas o que ficou, já está soterrado. – Então ele apontou – ali.
Segui o seu dedo até para onde o lugar indicado. Havia um montículo, alto e bastante extenso. Realmente parecia diferente das outras rochas e montes que eu havia visto. Mas, se não tivesse me sido mostrado, eu talvez não o percebesse.
Então ele continuou.
– O vento também soterra as crateras, de quando os detritos caem. Verdadeiras piscinas de areia movediça. É o maior perigo. Foi assim que o seu tio morreu. Ele caiu em uma, e afundou. Não conseguimos tirar ele a tempo, como tantos outros.
Acenei com a cabeça, afirmativamente.
– E dentro dessas crateras, se acumula água em seu fundo, de quando chove. Essa água percola e desce já filtrada para as cavernas. Mas por causa desse ambiente úmido, vivem muitos animais. Minúsculos, mas muito perigosos e famintos.
Assim entendi o que minha mãe quis dizer. Os animais perigosos são justamente os menores, escondidos.
Subitamente, quis perguntar para o meu pai o que queria dizer com “tirar o meu tio a tempo”. Antes de sufocar, ou ser comido vivo? Mesmo criança, eu não temia encarar esses temas.
Mas o vento intensificava, e eu não conseguia abrir a boca. Mesmo o tecido especial não conseguia mais amortecer tão bem o impacto de grãos de areia, agora pequenos seixos, batendo em mim. Eu jogava meu peso para baixo, pensando que se o vento aumentasse ainda mais, eu seria carregada junto.
Continuávamos andando, de volta para o poço para voltarmos, e eu ainda estava amarrada, mas o que me acalmava, era o sorriso do meu pai. Cada segundo a mais ali, valeria o esforço e risco.
-Você precisa entender as crateras. Sabe por quê?
Antes que eu pudesse responder, ele continuou, como se declarasse um discurso repetido inúmeras vezes, pelo menos internamente:
– Elas se formam na queda dos detritos, mas elas são soterradas muito rapidamente. Temos que subir todo dia, procurando elas. É nossa esperança. A tecnologia dentro desses detritos não é difícil de entender, e a maioria dos materiais pode ser reutilizado. De alguma forma, eles resistem bem as quedas. Um dia, sei que algum detrito que tenha algum material nuclear cairá, um que possamos usar como combustível, se é que já não caiu. Você me entende? Só precisamos encontrar. Então, finalmente, poderemos enviar em velocidade de dobra um pequeno comunicador, com nossa localização, como um farol.
Comunicador. Eu já havia escutado essa palavra antes… Sim, a parte mais importante de uma nave. Era para isso que o meu pai arriscava a vida, era para isso que meu amuleto servia. Meu amuleto era um farol, um sinalizador, apagado.
Concordei com a cabeça e disse, mesmo sem conseguir ouvir minha própria voz:
– Então vamos encontrá-lo, amanhã ou algum dia.