
Nossa casa ficava em cima de um dos morros que saiam alinhados da terra, imponentes como fossem a espinha dorsal do mundo.
Desde cedo aprendi que não era a toa vivermos tão no alto, tocando as nuvens. A importância de nossas vidas era estar atento, em guarda de algo que eu ainda não descobrira.
Protegidos por escarpas íngremes, conseguíamos ver nosso vale e suas árvores esguias que chegavam aos meandros dum riacho. Também víamos os vários pássaros, as nuvens, os sóis e as luas.
Seria assim como eu descreveria o meu mundo, com minha vista captada pelo movimento das coisas belas; mas meus pais provavelmente falariam para você unicamente sobre o que eles chamavam de “caminhos”, como as lacunas monótonas no céu ou a trilha inerte por entre as montanhas.
Assim ficávamos nós três, sentados em silêncio, virando os rostos por dentre várias direções, seja para o alto, seja para a trilha.
Às vezes meu pai usava a trilha. Levava consigo o nosso pequeno animal, um tipo de jumento que carregava no lombo parte da nossa plantação, enfiada em cestos que mãe tecia. Trazia de volta outras coisas: pregos, cordas, até carne.
Se havia crianças para lá da trilha? Não sei. Raramente eu podia ir até o riacho, quanto mais tão longe. Mãe explicava-me que não havia nada lá fora a ser visto de importante. Apenas a nossa vigília, do alto de nosso morro, valia a pena.
Nesses calmos e rotineiros dias, minha companhia era apenas poucas aves “tipo-galinhas”, e a tarefa secundária de cuidá-las, recolher os seus ovos, certas vezes cozinhá-los.
Eu não sabia como era um jumento de verdade, nem uma galinha de verdade. Nossos animais eram sempre “parecidos” com algo que nunca vi. Minha mãe não sabia o nome desses animais.
“Fauna local, não se preocupe”, ela bastava em responder. Incomodava-a tantas perguntas; e no fundo eu não insistia saber sobre sobre o que era uma fauna não local.
Cada uma das “tipo-galinhas” eram alguém para mim. Indivíduos únicos, com nomes próprios: a Bicuda, a Colorida, a Fujona, e, que saudades, a Dorminhoca.
Foi pela morte da Dorminhoca que aprendi realmente o que era tristeza. Lembro de uma monção em particular, realmente assustadora. Não que as outras não fossem. Nelas, havia o ritual de meus pais prepara casa e então nós dormíamos empilhados com os animais no porão, escondidos do frio, do vento e dos trovões. Mas naquela monção em especial a Dorminhoca finalmente não voltou a acordar.
Meu pai disse que ela devia ter morrido de susto por um trovão; como se fosse possível. Já imaginava que ela podia ser mais a velha de todas. Mas, se era mesmo mais velha, por que morrer de algo que já experimentou tanto?
Meu pai, grisalho e enrugado, parecia imbatível. Quando uma vez cortei meu pé, fiquei dias choramingando, querendo colo e mimos, no que minha mãe achou graça. Mas quando foi ele que cortou o pé, muito mais profundo, mesmo com todo aquele sangue, a única reação dele foi ficar bravo consigo mesmo, lamentando pelo tempo e trapos desperdiçados. Como se estivesse cansado de mais até para sentir a dor.
Com a experiência de tanto observar o mundo, fiquei perito em coisas que pareciam sutilezas, mas escondiam grandes transformações. Sabia distinguir pelo formato que uma revoada de pássaros voava acima do rio, se haviam peixes lá ou se passaríamos fome. Sabia pelo passo lento das nuvens, se daqui uma ou duas semanas iriam chover. Percebia o raro vermelhão de um dos Sóis se haveria um incêndio pelas matas secas nas próximas horas.
Gostava de encarar a imensidão do contraste entre o azul celestial e o vermelho rochoso. No mundo, as cores diferentes vinham apenas pelos pássaros.
Os pássaros voando eram meu divertimento, quando eu me distraia de vigiar. Admirava principalmente aqueles que nunca passavam por nós, viajando tão longe, como pontinhos no horizonte, alheios ao nosso morro, nossa casa, nossa tarefa.
Comentei com mãe uma vez que queria voar, saber o que havia no fim do vale, no meio das estrelas. Ela chorou.
Pai proibiu-me voltar a falar sobre isso. Eu queria acalmá-la, dizer que era um sonho bobo e que era claro que não nasceriam asas em mim. Mas o olhar de meu pai passou a me reprimir até nas minhas ideias.
Assim, aprendi a falar sobre coisas práticas, como a quantidade de ovos botados no dia, a quantidade de espigas que restavam armazenadas, ou sobre minhas impressões do clima. Sobretudo o clima.
Comentei como achava que logo iríamos entrar nas monções. As nuvens eram fáceis de serem lidas. Voavam baixas, cinzentas, às vezes transformando-se em uma gelada neblina.
Meus pais foram ao porão forrar as paredes com capim seco e cavar valas no chão por baixo do assoalho de pedras. Quando a água o alcançava o chão, subiamos o assoalho com mais pedras e madeiras. Era sempre um balanço entre viver por meses em um ambiente úmido, dormindo sobre a lama do chão encharcado, contra o risco de ficar na casa, expostos ao vento que poderia levar as paredes e com elas nós mesmos.
Foi naquele momento que vi algo vindo pelo céu. Não, vários algos. De imediato percebi que não faziam parte da paisagem. O medo misturou-se com a empolgação do novo. Diferente de pássaros, voavam retos, num passo contínuo, ignorando as sinuosidades das correntes do ar.
Diferente dos pássaros, não eram coloridos, mas pretos e reflexivos, como a pedra escura e polida que minha mãe guardava numa caixinha, ou como o riacho calmo, em uma grave noite sem luas.
Eram também barulhentos. Mesmo de longe, eu ouvia um ligeiro e crescente zumbido. Tudo no nosso mundo aprendia logo que o silêncio era vital para a sobrevivência. Nossos pássaros não cantavam.
Tantas regras que a natureza impunha ao nosso mundo e que eu intuitivamente aprendi como certas, sendo quebradas por aquela novidade, implacável na sua lenta vinda. Aquilo era feito pelos homens, e homens de longe, que eu nunca havia conhecido.
Gritei chamando o meu pai, gritei para minha mãe.
Meu pai ficou estanque ao meu lado, apoiou a mão no meu ombro e suspirou. Mandou eu acender a fogueira. A minha mãe começou a chorar, um choro diferente.
Foi quando percebi que a nossa vigília era apenas um esperar, e ela havia por fim terminado.
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